A Guerra do Rio: A farsa e a geopolítica do crime
José Cláudio Souza Alves*

Operação na Vila Cruzeiro termina com
nove mortos, seis feridos e 14 presos

Nós, que sabemos que o inimigo é outro, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar. Achar que as várias operações criminosas que vêm se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão. O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos. De um lado, Milícias aliadas a uma das facções criminosas; do outro, a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia. Exemplifico. Em Vigário Geral, a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica. Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de "segurança". Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos. Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônicos na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente o local, etc. Assim, em vez de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadan Husein e, depois, viu a farsa da inexistência de dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo? Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas. Justificar massacres, como o de 2007, às vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, na qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias, é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico. Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência; afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que os sustenta. A farsa da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual a paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros. Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas nas quais permanece operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto, com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas de execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro? Mas não se preocupem. Quando restar o Iraque arrasado, sempre surgirá o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade. Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.

*José Cláudio Souza Alves é sociólogo, Pró-reitor de Extensão da UFRRJ e autor do livro: Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense.

Estamira


Localizado no Rio de Janeiro na cidade de Duque de Caxias o lixão de Jardim Gramacho é o palco de uma história surpreendente: certo dia de chuva no ano de mil novecentos e noventa e quatro Marcos Prado resolveu conhecer de perto onde eram depositados todos os dias o que ele e o restante da sociedade classificavam como lixo. Aliás, diariamente há mais de vinte e cinco anos que o aterro de Jardim Gramacho recebe mais de oitenta e cinco por cento do total da produção de lixo da capital carioca.
Ao longo vários anos de periódicas visitas ao até então lixão, Marcos chegou a ganhar alguns prêmios em fotografia e queria revelar a missão que o governo do estado firmara após a ECO-92 que era transformar o lixão em aterro. Ao decorrer de sua tarefa quase que cotidiana MP conheceu uma catadora de lixo que fazia parte de um grande time de catadores que juntos somavam cerca de dez mil, essa catadora atendia ao nome de Estamira, mulher firme e com feições sofridas. Em uma conversa com Estamira, MP ouviu dela que tinha uma missão de vida: revelar e cobrar a verdade. Depois foi perguntado se saberia qual era missão dele, e ela mesmo respondeu: sua missão é revelar minha missão. Daí a idéia de fazer um documentário sobre a vida de Estamira, a mulher que vivia em um castelo todo enfeitado com objetos encontrados no lixo.
O documentário tem cento e quinze minutos, foi produzido em dois mil e cinco, lançado em dois mil e seis pela Zazen Produções com produção de José Padilha. A Obra foi premiada vinte e três vezes nacional e internacionalmente.
As características encontradas em Estamira são justificadas pelas suas explicações para todos os acontecimentos quer sejam naturais quer sejam físicos. A capacidade de teorizar assuntos cotidianos contrasta com o estereótipo que se tem de um catador de lixo, por isso é surpreendente. Tenho minhas dúvidas se muitos magistrados conseguiriam a compreender facilmente. È complexa. É completa. É louca! Essa última denominação é a sociedade ”normal” quem tece. Ela sofre de distúrbios mentais, mas não concorda com a clínica e o diagnostico que a tornam uma má. O fato de Estamira ter enlouquecido é amplamente justificado ao longo da história quando se descobre que essa mulher já sofreu muito e agora resolveu mostrar por que sofrera tanto, em seu entendimento, e de quem é a culpa, o “trocadilho”, como é chamado o culpado pela Estamira, assume várias interpretações, porém a mais legível é a de que Deus seja o “trocadilho” e o culpado pela situação a qual se encontra a personagem. Não isentando o homem de culpa vê que muitas situações deveriam estar diferentes, como por exemplo a quantidade de lixo desperdiçado pela sociedade. Ela acha um grande desperdício e diz que os homens não pensam antes de certas atitudes. Nesse ensejo ela pronuncia uma frase muito interessante: “A Terra disse, ela falava, agora que já ta morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada.” Há um significado atual para essa frase que classifica o homem como o causador do mal ambiental na terra e agora que a terra já ‘acabou’ a terra disse que não seria testemunha de nada, ou seja, a terra não tem com que se importar, ela mandou sinais, avisou. Outra passagem marcante diz respeito ao comunismo superior: “Todos homens tem que ser iguais, tem que ser comunistas” quem sabe essa não é uma mensagem para a sociedade que só pensa em consumo de forma desenfreada e capitalista?!
Em síntese o que se tem a dizer sobre Estamira restringe-se a um campo vago. O básico comum: Estamira enlouqueceu por que sofreu muito na vida, foi alvo do conjunto capitalista e todos os seus defeitos, todas as suas crises. Embora seja taxada como louca não perdeu o essencial para isso: a lucidez dos fatos.